sexta-feira, 11 de abril de 2014

No berço das milícias A delegacia que mais registra desaparecimentos no Rio de Janeiro é a que recompensou seus policiais com R$9 mil a mais pela queda da "letalidade violenta".


Os policiais de Campo Grande, na zona oeste do Rio de Janeiro, estão entre os que mais se beneficiaram dos bônus pela queda nas estatísticas de “letalidade violenta” no ano passado – a região teve o segundo melhor resultado do estado, atrás apenas da pequena Barra do Piraí, no interior do estado. Em dezembro, o governo anunciou que cada policial da região receberia R$ 9 mil a mais no contracheque pelo cumprimento da meta.
 
De fato, os homicídios caíram bastante por lá. Em 2011, foram registrados 149; em 2012, 106 casos, e apenas 60 homicídios constam nos dados disponíveis dos últimos 12 meses (seis deles registrados como autos de resistência) – correspondendo a uma queda de 60%. Mas os desaparecimentos só aumentaram. Passaram de 212 para 249 entre 2011 e 2012 e já somam 278 casos nos últimos 12 meses. É a delegacia que mais registra desaparecimentos no Estado.
 
Campo Grande é conhecido por moradores e especialistas como o berço das milícias, que continuam a agir com a maior desenvoltura através da cobrança de taxas da população – para autorizar a circulação das vans, dos caminhões de gás, instalar TV a cabo pirata e, claro, fornecer “serviços de segurança”. Esses “serviços” incluem dar fim a “suspeitos” de pequenos crimes ou de importunar a ordem local.
 
“Muitas das milícias são formadas por policiais em atividade. A escala da PM é de 24h de trabalho por 72h de folga. Nestas 72h de folga, o PM vira miliciano. É o bico. E o objetivo da milícia é desaparecer com marginal”, diz o sociólogo Michel Misse, coordenador do Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e autor do livro “Quando a Polícia Mata”.
 
No dia 31 de julho de 2012, Donício Alves Vianna Júnior, conhecido como Dony e morador da comunidade de Bel Clima, em Campo Grande, desapareceu. Naquela noite, pretendia sair com o primo e com a cantora Anitta – que ainda não tinha caído nas graças do público, apenas na lábia do Don Juan de Bel Clima, com quem tinha um affair. Tudo que se descobriu sobre o desaparecimento do garoto de 22 anos, estoquista de uma empresa que prestava serviços para Michelin, é que ele foi rendido naquela noite por volta das 21h30 por um grupo de quatro homens.

Fui visitar a família de Dony em Bel Clima, uma das grandes ilhas de pobreza que se encontram nesse bairro de classe média, como acontece em todo lugar no Rio de Janeiro. No meio da tarde quente de janeiro, a praça estava iluminada pelo sol incandescente do verão e crianças brincavam despreocupadas nos brinquedos do play. Aliás, como lembram seus familiares, a praça onde Dony desapareceu é muito frequentada, mesmo à noite. Ainda assim os sequestradores não se intimidaram.
 
“Dizem que aqui não tem milícia, só que tem sim. É pior ainda que outros lugares porque aqui ela não dá tanto na vista”, diz Robson da Silva Heringer, primo e melhor amigo de Dony. Antes do desaparecimento, os dois eram unha e carne, compartilhavam segredos. Robson conta que Dony assinou sua sentença de morte ao se envolver com a amante de um dos chefes da milícia local, seu vizinho. “O moleque era ‘pintoso’. E era chato. A gente ia lá para o Camaleão (boate), lá para o lado do RioCentro, e ele pegava geral. Vinha todo dia falando de mulher”, conta o primo enquanto conversamos no local onde o garoto desapareceu.
 
“Onde ele chegava juntava um monte em cima dele, né? A maioria das amizades dele eram com mulher”, concorda a mãe de Dony, Vera Lúcia Vianna, com uma pontinha de orgulho.
 
Dony conheceu a Eva de seu Paraíso semanas antes de desaparecer, no salão onde cortava o cabelo, ali perto. Comentou com o primo que a loira estava dando mole. Pergunto a Robson se o primo sabia que a moça estava envolvida com um miliciano. “Creio que não. Se ele soubesse, não seria tão burro. Mulher tem aos montes por aí”, responde Robson.
 
Na emboscada, os milicianos deram socos, tapas e ameaçaram Dony com um fuzil. Pelo menos um deles vestia uma camisa cinza onde se lia “POLÍCIA CIVIL”. Entraram no seu carro e obrigaram-no a dirigir para o nada.
 
Sem dormir, a família ficou dois dias procurando por ele: foram no Instituto Médico Legal, visitaram favelas, reviraram matagais da zona oeste conhecidos como locais de desova dos milicianos. “Nós rodamos isso tudo atrás do meu filho. Entrei em todas as favelas. Meia-noite estava naquela de Cosmos”, conta Vera Lúcia com a voz cansada e o olhar perdido na tatuagem que fez para o filho no braço.
 
Cosmos é uma localidade que rima com milícia. Lá os integrantes destes bandos andam com uma arma na mão e mulheres, bebidas ou “vagabundos” no outro braço. ”Campo Grande todo é da galera de Cosmos. Tudo que é quadrilha de Campo Grande presta contas lá”, explica Robson. “Cosmos é o quartel-general deles”, diz o pai de Dony.
 
O Fiat Siena preto que Dony dirigia ainda apareceu uma vez depois do sumiço dele. Outro primo do garoto perseguiu de moto o veículo que rodava em alta velocidade pelas estradas de Campo Grande. Derrapou numa curva, caiu, machucou o braço, e nunca mais ninguém viu o carro de novo.

Segundo o inquérito aberto para investigar o caso, não havia policiais civis envolvidos, mas sim quatro policiais militares do 27º (Santa Cruz) e 40º (Campo Grande) batalhões que foram presos. Dois comparsas e a loira continuam foragidos. Enquanto conversamos na calçada, Robson aponta um Renault Sandero com vidros pretos que, segundo ele, foi o carro que abordou Dony no dia do crime. Um dos suspeitos estaria ali dentro, ele diz.
 
“Eles espalharam câmeras por aqui tudo, já devem até ter visto que estamos conversando”, diz Robson. O carro passa lentamente, parece que a não mais do que 5 km/h. Não é possível ver quem está dentro do veículo por causa dos filtros nas janelas do carro, mais escuros do que a lei permite.
 
Para o delegado, fato isolado
O delegado da 35ª DP (Campo Grande), Marcus Drucker Brandão, encarregado do inquérito, me recebe no escritório quase desprovido de mobília, ocupado por uma mesa coberta de pilhas de papéis. Puxo uma cadeira para escutá-lo. Ele começa por criminalizar a vítima, que segundo ele, estava “prestando vestibular para o crime”. “Uma testemunha conta que ele havia dirigido um carro para outro colega tentar matar um miliciano”, diz.
 
Depois disse que o caso de Dony é “um fato isolado” no bairro que, segundo ele, nem tem mais as milícias formadas majoritariamente por policiais. “Hoje estes grupos são o que nos Estados Unidos chamam de gangues. A grande maioria dos policiais e ex-policiais que comandavam as milícias estão presos. Neste vácuo de poder do crime, eles foram substituídos por civis. O problema é que, por continuarem sendo chamadas de milícia, elas passam uma condição oficial, ou oficiosa, para a comunidade”, discursa.
 
Segundo a Secretaria de Segurança Pública do Estado, que destacou a Delegacia de Repressão às Ações Criminosas e Organizadas e Inquéritos Especiais (Draco-IE) para combater as milícias, entre 2007 e 2013, 857 milicianos foram presos, contra apenas cinco em 2006.
 
Brandão diz ainda que a maior parte dos desaparecimentos é de gente que perde o caminho de casa por sua própria vontade. “Há muitas famílias desestruturadas na região.”
 
Não é essa a realidade que apontam as pesquisas acadêmicas. Segundo um estudo recente da antropóloga Alba Zaluar, do Instituto de Estudos Sociais e Políticos (Iesp) da UERJ, em conjunto com Christovam Barcellos, da Fiocruz, a milícia domina 454 das 1001 favelas localizadas no município do Rio de Janeiro – o equivalente a 45%.
 
“Lá (em Campo Grande) estão as milícias. Lá também estava a maior taxa de homicídios do município. É a milícia que está matando. Vai investigar o quê? Começar por onde? Miliciano enterra no meio do mato e acabou. As famílias têm medo. O máximo que elas fazem é registrar o desaparecimento, quando o fazem. Muitos desaparecimentos nem são registrados. Acho inclusive que a maioria dos desaparecimentos que são, na verdade, assassinatos não são notificados”, opina Misse.
 
Com ele concorda Ignácio Cano, autor do livro “No Sapatinho”, sobre a evolução dos grupos paramilitares no Rio de Janeiro: “Apesar do número de denúncias ter caído a partir de 2009, a repressão não conseguiu desarticulá-las (as milícias). Há indicações de que elas continuam atuando normalmente”, afirma.
 
Em seu estudo, Cano propôs um modelo estatístico cruzando dados de denúncias contra milícias e registros de desaparecimentos e homicídios até 2011. Para ele, ficou estabelecida a ligação dos sumiços em Campo Grande com os grupos paramilitares da região. “Elas estão matando menos, mas estão sendo mais discretas nos seus homicídios, recorrendo ao desaparecimento de pessoas como alternativa. Os registros oficiais de desaparecimentos, a despeito das suas limitações, parecem confirmar uma tendência de aumento de casos em locais e momentos que a milícia está mais presente.”
 
Há moradores de Campo Grande que aprovam e outros que temem a atuação das milícias. Um deles, ex-colega de escola de alguns milicianos que atuam sob o codinome de personagens do game Street Fighter, descreve com rigor e certo fascínio um dos métodos utilizados pelos criminosos para desaparecer gente. “Eles fazem um corte do pescoço até o umbigo e retiram as vísceras da pessoa. Aí jogam no rio Guandu. Sem as vísceras, o corpo não boia, afunda.”
 
O rio, que passa por Campo Grande e deságua na Bacia de Sepetiba, é onde está localizada a estação de tratamento de água (ETA) Guandu. A Companhia Estadual de Águas e Esgotos (CEDAE) se orgulha da construção: é a maior do mundo, reconhecida pelo Guinness, o livro dos recordes. Um funcionário da empresa comenta que não há dia que não tiram um cadáver da peneira da ETA Guandu direto para o IML. Desde 1955, sai dali a água que abastece toda a cidade do Rio de Janeiro e boa parte da Baixada Fluminense. O líquido pinga das torneiras insípido, incolor, com cheiro de morte.
 
Na mira do tráfico
Outro caso de desaparecimento investigado nessa reportagem é o de Felipe Rodrigo Pinheiro Venâncio, no dia 22 de novembro de 2008, em Duque de Caxias. Felipe morava na Cruzada São Sebastião, uma ilha de pobreza no coração do Leblon, bairro com o metro quadrado mais caro do Brasil. Construído em 1955 para abrigar os moradores despejados da favela Praia do Pinto, o conjunto habitacional tem 10 prédios e 945 apartamentos construídos em padrão muito inferior ao dos edifícios vizinhos. 

 
Mas o garoto de 20 anos gostava de ficar no apartamento onde morava, no bloco 5. De lá só saía para dar uma passada num bar ao lado ou para visitar familiares em Jacarepaguá, na zona oeste da cidade. No dia fatídico, a contragosto da mãe, Gracilea de Alcântara Pinheiro, cedeu ao pedido da namorada de passar a noite de sábado com ela em Nova Campina, na Baixada Fluminense. A sogra estava de aniversário. Segundo relatos, foi a última festa que o jovem participou na vida.
 
No dia seguinte, o telefone da casa da mãe de Rodrigo tocou por volta das 16 horas. Sua irmã, Patrícia, atendeu. “Meu irmão, não! Meu irmão, não!”, repetia, antes de desmaiar. Do outro lado da linha, a namorada do jovem, Juliana, dizia que Felipe havia sido raptado por três homens enquanto jogava futebol num campo ao lado do “Brizolão”, uma escola de Nova Campina construída durante o mandato do finado governador. E desligou.
 
Sem o telefone ou o endereço da namorada, a família de Rodrigo penou ao iniciar a busca. Na delegacia, só aceitaram registrar o boletim de ocorrência no dia 25, três dias depois do desaparecimento. ”Em todo lugar só faltaram falar que eu era mentirosa. O inspetor que nos atendeu disse: ‘Esta história está muito mal contada’. Eu não podia inventar outra história porque foi o que a Juliana passou pelo telefone. Ela não falou com a gente pessoalmente”, conta a mãe.
 
Diante da família, a polícia atacava a vítima, um jovem negro morador de uma comunidade onde sabidamente existe tráfico de drogas, consumidor ocasional de maconha. Vale tudo para evitar uma investigação aprofundada, como descobriria depois a família de Amarildo.
 
“Eles acham que filho de pobre é tudo traficante, não pode estudar, se formar. Então se acontece alguma coisa é porque é vagabundo”, afirma a irmã do desaparecido. “Ninguém podia dizer que era traficante. Não tinha registro na polícia nem nada. E mesmo se fosse, ele é um cidadão.”
 
Em depoimento ao delegado, Juliana e o pai dela disseram que não sabiam quem poderia ter levado Felipe. Uma semana depois do desaparecimento, porém, o pai de Juliana apareceu na Cruzada com todas as roupas que Rodrigo havia levado para Nova Campina: uma camiseta azul clara, calça bege, uma bermuda, um par de tênis, meias e até a cueca. Também devolveu os documentos do rapaz.
 
“Passei isso para a polícia, mas não colocaram no boletim de ocorrência. Não consegui entender como ele chegou com a roupa toda completa do garoto e os documentos dele. Eu disse para ele pelo menos telefonar para a delegacia, contar o que tinha acontecido. Ele respondeu: ‘Sinto muito. Eu sei quem matou seu filho, mas não posso falar porque eles estão na frente da minha casa 24 horas por dia. Se a gente falar quem fez, vão matar todo mundo. E a Juliana tive que tirar de casa porque eles querem matar ela também.’”
 
Histórias que chegaram aos ouvidos da família dão conta que Juliana teria envolvimento anterior com um traficante de Nova Campina integrante de uma facção rival aos “donos” do comércio de droga da Cruzada. A ex-namorada estaria então nos braços de um inimigo.
 
A investigação da polícia não comprovou esta versão nem qualquer outra. O inspetor que me recebeu na 62ª DP (Imbariê) disse apenas que o caso foi relatado no ano passado ao Ministério Público. Desde então permanece parado, já que não há provas para acusar ninguém da responsabilidade pelo crime.
 
Encontrei a casa que Juliana e sua família moram em Nova Campina, o local onde Felipe teria passado seus últimos momentos. É uma região humilde, as ruas não têm nome e a residência deles foi construída com muitas tábuas de madeira de procedências diferentes. Mandei um recado por uma vizinha para pedir para conversar com eles. Ela me diz que eles ficaram desesperados e pediram para ela falar que não conseguiu encontrá-los. Não querem remoer o caso.
 
Duque de Caxias é a maior cidade da Baixada e responde por 298 desaparecimentos – um quarto do total dos casos registrados entre novembro de 2012 e outubro do ano de 2013. Também é o primeiro município fora da capital fluminense a receber uma UPP, na favela da Mangueirinha, inaugurada em fevereiro.
 
Tive acesso a muitos casos desses casos de desaparecimento ocorridos há 3, 4, 8 e até dez anos que não foram devidamente investigados. Terminaram como o de Felipe, sem identificar responsáveis. Há no máximo indícios. Ninguém é punido. O velho ditado “não há corpo, não há crime” prevalece.
 
Mortes inconclusas
Uma portaria da polícia civil do Rio de Janeiro de fevereiro de 2013 passou a exigir que as delegacias enviem os casos de desaparecimento não solucionados no prazo de 15 dias para a Seção de Descoberta de Paradeiros da Divisão de Homicídios – a mesma que investigou o sumiço de Amarildo. No entanto, nem sempre a norma é respeitada; outras vezes é a seção que não tem como dar conta da demanda.
 
Após uma pressão da Corte Interamericana dos Direitos Humanos, o Senado aprovou um projeto de lei para tipificar os desaparecimentos e transformar os sumiços forçados em crime. A votação ocorreu pouco depois do caso Amarildo. Se aprovado também pela Câmara dos Deputados, a prática será incluída no rol dos crimes hediondos. A pena de prisão pode variar de 6 a 40 anos.  Enquanto isso, prevalece o abandono dos casos.
 
Amarildo estava construindo uma laje no barraco onde morava para fazer um quarto para as filhas. Prometeu à Milena, de seis anos, que não morreria antes de terminar a obra. O dia em que Dony desapareceu foi o seu último de trabalho como estoquista. O dia seguinte seria sua estreia em um novo emprego, mais bem remunerado. Felipe só queria sair de moto nova por aí com a namorada.
 
São mortes inconclusas. Há dias que os familiares sonham no retorno dos sumidos com vida carregando os tijolos da obra, de volta do trabalho ou em cima de uma moto. Noutros, só gostariam de poder enterrá-los com dignidade, sete palmos de paz, o fim da angústia. “Medo? Eu não tenho nem um pouco”, diz a mãe de Dony, que se mudou de Campo Grande para o bairro vizinho de Bangu para evitar o local onde o filho foi visto pela última vez. “Eu tenho vontade de falar com quem fez isso cara a cara. Ele tirou a coisa mais importante da minha vida. Se ele me matar, está fazendo até um favor. Eu só queria ter o prazer de falar ‘você não tem filho, não, seu canalha? Você tirou a vida do meu filho tão jovem. Você não deve saber amar.’”






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