quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

O TEMPO MUDOU OS BANDIDOS

28/11/2003 - 04h01

Drauzio Varella: A ética de Sete Dedos, Meneghetti, Promessinha


DRAUZIO VARELLA
Colunista da Folha de S.Paulo

O crime não compensa, dizia com ênfase o locutor no final. No tempo em que ter um rádio era privilégio de poucos no bairro do Brás, os vizinhos se reuniam religiosamente em casa de meu tio Constantino para ouvir um programa da Record que dramatizava as peripécias vividas pelos criminosos mais temidos.

De calças curtas, eu ouvia com a respiração presa as aventuras de Sete Dedos, Meneghetti, Dioguinho, Boca de Traíra, Promessinha, invariavelmente mandados para trás das grades pela diligente polícia paulista, para provar que o crime realmente não compensava. A licenciosidade do tio, que permitia aquele mergulho no mundo dos adultos, transformava-me em centro das atenções da molecada no dia seguinte.

Eu relatava as histórias nos mínimos detalhes, auscultando as reações da platéia ao ouvir a descrição das fugas espetaculares de Meneghetti, feito gato pelos telhados, da frieza de Sete Dedos, ao invadir as casas sorrateiramente enquanto a família dormia, e da perversidade de Promessinha, ao perguntar se a vítima preferia tiro ou beliscão, que era dado com alicate no umbigo dos que optavam pela segunda alternativa.

Depois vieram os anos 60, e surgiu no submundo a figura do bandido-malandro, mistura de ladrão, boêmio, contrabandista, traficante de maconha e anfetamina, explorador do lenocínio e das casas de jogo.

Eram marginais como Hiroíto, o "Rei da Boca do Lixo", Nelsinho da 45, Marinheiro, Brandãozinho e Quinzinho, célebre contador de casos, que concentravam suas atividades nas imediações das ruas Vitória, Santa Ifigênia, dos Gusmões, dos Andradas.

No final dos anos 80, quando iniciei meu trabalho na Casa de Detenção, conheci detentos mais velhos que haviam cumprido pena com esses marginais. Diziam que Sete Dedos era de educação exemplar, desde que não fosse chamado pela alcunha; o italiano Meneghetti, um senhor de respeito; o franzino e míope Hiroíto se impunha pela inteligência no relacionamento social. Eram homens respeitadores de três princípios sagrados no mundo do crime: jamais delatar, cumprir a palavra empenhada e respeitar os familiares dos companheiros.

No final dos anos 70, a cocaína se insinuou entre a marginalidade e se alastrou na forma de epidemia na década seguinte. A partir dos anos 90, a cocaína em pó cedeu lugar ao crack, que tomou conta da periferia de São Paulo e invadiu as prisões, subvertendo a hierarquia e os valores éticos.

A necessidade de divisão do trabalho para ganhar eficiência no tráfico e na distribuição da droga levou à formação de quadrilhas e associações de criminosos.

A velha ordem imposta pelos bandidos famosos por sua trajetória marginal foi desalojada pela lógica de mercado baseada no lucro, segundo a qual os personagens se tornaram peças anônimas e descartáveis.

Os princípios éticos do passado foram substituídos pela lei do mais forte: "Contra a força não existe argumento". Entramos na era do crime sem face humana, quadrilheiro, em que a vida do criminoso pode ser suprimida com a mesma imprevisibilidade com a qual ele tira a vida alheia.

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