quarta-feira, 27 de julho de 2016

O PESADELO DE GOIÁS

Ruínas do Hospital Psiquiátrico Adauto Botelho
O Manicômio é algo como um pesadelo do qual não conseguimos escapar. Mas nos raros momentos de vigília antimanicomial chegamos até a acreditar que caminhamos rumo a uma vida de maior respeito à liberdade das pessoas, de todas as pessoas, independentemente do eventual sofrimento psíquico de cada um. E quase todos nós passamos por sofrimentos dessa natureza em algum momento da vida.
Há dezesseis anos, fechávamos em Goiás o então recém-construído manicômio judiciário que seria inaugurado nas imediações do grande complexo prisional de Aparecida de Goiânia. O vídeo “Antecipando o absurdo”, de Luiz Eduardo Jorge, retratou aquele momento em que celebramos uma importante vitória antimanicomial. Felizmente, o manicômio não chegou nem mesmo a ser inaugurado, e o que havia sido planejado para ser um hospital psiquiátrico tornou-se no que até hoje ainda é o presídio de segurança máxima do Estado de Goiás, rebatizado de Núcleo de Custódia.
A experiência da liberdade no plano da saúde mental vinha sendo conduzida em Goiás nos moldes do que, pouco tempo depois, passou a ser uma exigência normativa com o advento da Lei nº 10.216, de 6 de abril/2001. Com a chegada da Lei Antimanicomial, a propósito, Goiás chegou a instituir uma das mais avançadas políticas de saúde mental no Brasil na atenção às pessoas submetidas às medidas de segurança com a criação do PAILI, Programa de Atenção Integral ao Louco Infrator, em 2006. É certo também que problemas comuns às políticas de saúde em geral se viam na estruturação da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), mas as coisas aconteciam sem reveses manicomiais. Deficiências e desafios existiam e ainda existem, o que se mostra evidente na pouca oferta de Centros de Atenção Psicossocial (os CAPS) tanto para adultos quanto para crianças ou adolescentes e, mais ainda, de CAPS do tipo AD (álcool e outras drogas), voltados ao atendimento das pessoas com dependência química ou que fazem uso abusivo de substâncias psicoativas, assim como CAPS do tipo III, que funcionam 24 horas por dia e que permitem o acolhimento noturno de pessoas em sofrimento mental.
CREDEQ (2016)

Da mesma forma, não houve a estruturação dos hospitais gerais para o acolhimento da demanda por serviços de atenção à saúde mental. Se os manicômios (hospitais especializados em psiquiatria) já não são mais uma possibilidade legal, a internação psiquiátrica, por sua vez, é um recurso terapêutico muitas vezes necessário em situações de crise, sendo prevista na própria Lei Antimanicomial. Para estes casos, leitos psiquiátricos deveriam ser mantidos em hospitais gerais, o que não aconteceu em Goiás. A desassistência em situações críticas tem sido, então, uma realidade do cotidiano de muita gente, trazendo consigo as condições perfeitas para um novo mergulho no pesadelo.
Então, ao invés de insistir na estruturação de uma rede de atenção psicossocial alinhada com a lei e com as políticas já definidas nacionalmente e que têm a liberdade como regra na atenção em saúde mental, bem como diante do quadro de dificuldades derivadas da desassistência, somados, tais fatores, ao atalho fácil do discurso demagógico e eleitoreiro e do apego a uma cultura de aprisionamento e segregação, surge a solução milagrosa: o manicômio. Sim, o velho e cansado manicômio ganha nova maquiagem e roupas da moda, sendo apresentado como a solução para os problemas que as famílias enfrentam ao lidar com um ente querido que passa pelo transtorno da dependência química.
Fruto desse pesadelo do qual teimamos em não despertar, nasceu em Goiás o CREDEQ, o Centro de Referência em Dependência Química, sobre o qual escrevemos em recente texto aqui mesmo no Justificando. Nada mais do que um hospital psiquiátrico, daqueles mesmos cuja construção está vedada legalmente desde 2001. Os seus custos altíssimos (a primeira de dez unidades planejadas custou cerca de R$30 milhões), que seriam mais do que suficientes para fazer uma revolução caso houvesse interesse na estruturação da RAPS, agora comprometem seriamente o orçamento do setor e serão utilizados para a internação de quem faz uso abusivo de substâncias psicoativas. O recurso terapêutico excepcional da internação passa a ter prioridade dentro do próprio orçamento e não é preciso ser nenhum matemático para observar que apenas com a construção das unidades prometidas o governo estadual gastará cerca de R$300 milhões. A manutenção dessa grande rede manicomial, via organizações sociais, custará outra fortuna, e já há sinais de que a previsão inicial de R$600 mil/mensais talvez não sejam suficientes para manter os 96 leitos do primeiro CREDEQ inaugurado e colocado sob a gestão da Comunidade Luz da Vida, entidade católica experiente na administração das muito controvertidas comunidades terapêuticas (!).
Como em qualquer pesadelo, há momentos em que o onírico se confunde com o real. A imagem das ruínas de outro hospício goiano, o antigo Hospital Psiquiátrico Adauto Botelho, demolido em Goiânia na década de 1990 após longa história de violência contra os loucos, forma uma espécie de esboço da ostentação do novo manicômio inaugurado agora em 2016, o CREDEQ. Compare as fotos. Numa poesia do absurdo, o CREDEQ evoca desde o seu projeto arquitetônico o que houve de pior na política de saúde mental em Goiás.

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