quarta-feira, 27 de julho de 2016

. O CREDEQ de Caldas Novas na mira de promotor público

O leitor mais apressado talvez se deixe seduzir pelo nome pomposo, mas com o olhar atento irá perceber que, apesar da denominação que promete muito, o CREDEQ não passa de uma nova modalidade de comunidade terapêutica. Em sua página oficial , ele é apresentado como “serviço de referência na atenção de usuários gravemente comprometidos pelo uso de drogas (...) para os quais os recursos disponíveis nas redes municipais não tenham apresentado a devida resolutividade”. Entretanto, está arquitetonicamente projetado para internações de longo prazo, embora a palavra internação não se faça presente nos seus estatutos, termo que ali dá lugar a “leitos de acolhimento em modelo residencial”, o que evidencia o sofisma empregado na definição dessa que se pretende uma política de saúde mental. Convém esclarecer que a primeira unidade CREDEQ inaugurada é administrada pela Comunidade Luz da Vida, Organização Social católica com experiência na gestão de... comunidades terapêuticas.
Diante de uma realidade que é nacional e do crescente populismo manicomial, não é difícil antever o comprometimento do orçamento público com as comunidades terapêuticas, o que fica mais evidente pelos altíssimos custos do CREDEQ. Além das previsíveis consequências advindas da lógica manicomial, a destinação de recursos do erário para essas instituições fatalmente dificultará a estruturação de políticas orientadas em conformidade com a Lei 10.216.
Para a atenção em saúde mental deve-se desenvolver a Rede de Atenção Psicossocial de forma inseparável da Lei 10.216. Já o populismo manicomial prefere o atalho fácil da segregação, o que não traz solução e acaba produzindo efeitos colaterais severos, mediante práticas que já não poderiam ser nem mesmo cogitadas em face da ordem normativa vigente.
O populismo manicomial leva a práticas autoritárias. Soluções como o CREDEQ ou as comunidades terapêuticas, no modelo asilar/religioso/confessional, jamais poderiam ser financiadas pelo poder público.
Por outro lado, da mesma forma que não é capaz de entregar o que promete, o populismo manicomial acaba reforçando o proibicionismo e a política de guerra às drogas, opondo sérios obstáculos a uma discussão mais aprofundada acerca do consumo de substâncias psicoativas e da dependência química.
A atenção em saúde mental deve passar pelo crivo da ordem normativa, com destaque para a Lei Antimanicomial, que não abre brechas para a reabertura do manicômio, mesmo que travestido de lugar de acolhimento residencial do usuário de drogas. Por isso, convém também lembrar que iniciativas do poder público que não se sustentem na legalidade implicam em improbidade administrativa (Lei nº 8.429/92, art. 11). Logo, se o investimento ou o repasse de recursos públicos para a atenção em saúde mental não tiverem fundamento nos dispositivos e princípios da Lei 10.216, os responsáveis por empenhos dessa natureza devem ser chamados à responsabilidade administrativa e criminal, tanto no nível federal quanto no dos estados e municípios.
O populismo manicomial talvez até funcione como discurso eleitoreiro, mas não é o bastante para legitimar a definição de políticas públicas. O CREDEQ jamais poderia ter sido construído. Diferentemente dos relatos que vêm do século XVII, onde o manicômio funcionava sem qualquer regulamento que lhe impusesse limites, as coisas já não são mais assim. O século é outro; o Estado é outro, democrático e de direito. E qualquer política pública voltada à saúde mental da população deve estar em estrita conformidade com a Lei Antimanicomial.
Haroldo Caetano é promotor de justiça do Estado de Goiás, mestre em Direito (UFG) e doutorando em Psicologia (UFF)

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