Em um mundo angustiado pela crise econômica, aprendemos que de março de 2009 a março de 2014, exatamente o período considerado mais crítico, depois da bancarrota do Lehman Brothers, o número de bilionários do planeta dobrou: eram 793 no começo do furacão e agora somam 1.645. Os 85 mais ricos entre eles, no mesmo período, incrementaram seus capitais em 668 milhões de dólares a cada dia e sua renda equivale àquela de metade da população mundial, 3,5 bilhões de outros seres humanos. Os dados constam, entre outras “pérolas”, do recente estudo sobre a desigualdade no mundo, publicado pela Oxfam, rede internacional de 19 ONGs que combatem a pobreza. Na sequência da divulgação do relatório, originalmente chamadoEven It Up: Time to end extreme inequality, foi lançada a campanha mundial de sensibilização “Equilibre o jogo”.
Crise é um termo utilizado no mundo inteiro para descrever situações diferentes, mas com um denominador comum, a desaceleração do crescimento das economias, que em média superava os 4% anuais na década passada e hoje sofre para chegar perto dos 3,5%. Para resolver os problemas provocados por esse recuo e retomar o ritmo anterior, os defensores do atual sistema econômico-financeiro indicam um caminho único, a ampliação do espaço da iniciativa privada em detrimento do setor público, com corolário de cortes nos gastos sociais e intensificação da produtividade no trabalho. Em outras palavras, salários mais baixos para criar produtos mais baratos. Essa receita, baseada numa visão brutalmente quantitativa do bem-estar da humanidade e sem nenhuma atenção à equilibrada convivência social, é rotundamente recusada pela Oxfam. Com riqueza de informações e análises, a desigualdade é descrita sob diversos aspectos, e o estudo chega à conclusão de que essa praga contemporânea não só é contrária a uma ética humanista, mas também a causa fundamental da crise econômica em curso.
O primeiro mito que o relatório se encarrega de derrubar é aquele que considera natural a desigualdade entre os seres humanos. Melhor se concentrar na redução da pobreza, afirmaram os liberais a partir da Revolução Industrial, pois a compaixão é a única maneira de mitigar a lei natural que inevitavelmente produz as diferenças. Mas a desigualdade excessiva tem comprometido o combate à pobreza, apesar dos bons resultados conseguidos nesse campo até o início dos anos 80 do século passado. O abismo entre ricos e pobres nas últimas três décadas, demonstra a pesquisa, tem clara correlação com a baixa mobilidade social. Em outros termos, nos países em que o fenômeno é mais acentuado, quem nasce rico fica rico, quem nasce pobre não tem outra alternativa além de permanecer pobre. A esperança de uma vida melhor, na evolução entre pais e filhos, é banida do horizonte de bilhões de seres humanos.
Com raras exceções, a desigualdade tem aumentado em todos os países do mundo. Caso particularmente emblemático, a Oxfam calcula que até na África do Sul a desigualdade é hoje maior do que no período do Apartheid. Com base em dados de 2013, 7 de cada 10 habitantes do mundo vivem em países em que a desigualdade econômica é maior do que há 30 anos.
O enriquecimento desmedido de um número restrito de indivíduos, a depender dos países, encolheu ou limitou o crescimento da classe média, comprometendo a sua capacidade de gasto e, em última análise, o motor do crescimento mundial. Desde 1990, a participação do trabalho na composição do PIB mundial é constantemente decrescente. O ataque ao valor e à dignidade do trabalho é particularmente acentuado nos países mais pobres, mas também ocorre nas nações ricas. Por consequência, o PIB mundial é composto por uma porcentagem crescente do capital, que se autoalimenta cada vez mais da especulação financeira.
As 150 páginas da pesquisa, com amplíssima bibliografia, demonstram que a desigualdade extrema também está associada à violência. A América Latina, a região mais desigual do mundo do ponto de vista econômico, reúne 41 das 50 cidades mais violentas do planeta e registrou 1 milhão de assassinatos entre 2000 e 2010. Países desiguais são lugares perigosos para viver, e a insegurança afeta tanto ricos quanto pobres.
A desigualdade econômica produz ainda diferenças em termos de oportunidades de vida. Quem está na parte baixa da escada social tem grande desvantagem em termos de escolaridade, saúde e expectativa de vida. A Oxfam demonstra com dados e gráficos que a “pobreza interage com desigualdades econômicas e de outros tipos para criar ‘armadilhas de desvantagens’ que empurram os mais pobres e marginalizados para o fundo – e os mantêm lá”. E a globalização da economia aumentou consideravelmente o número de super-ricos nos países em desenvolvimento e emergentes. Na África Subsaariana, 16 bilionários convivem com 358 milhões em pobreza extrema.
No atual cenário, o Brasil, que nos últimos 12 anos tirou da pobreza dezenas de milhões de indivíduos, é citado várias vezes no relatório como positiva exceção por ter agido na contracorrente mundial, mas também como exemplo de uma desigualdade ainda gravíssima que afeta as perspectivas de resgate econômico e de pacificação nacional. É extremamente fácil evidenciar a imediata correspondência entre o aumento de 50% no valor do salário mínimo entre 1995 e 2011 e a redução da pobreza e desigualdade no País.
Como exemplo oposto, dados de 40 países europeus e latino-americanos revelam que a capacidade redistributiva de um bom sistema fiscal, combinada com gastos sociais bem-focados, pode reduzir as disparidades de ingressos produzidas pelo mercado. A Finlândia e a Áustria conseguem reduzir pela metade essa desigualdade por meio de impostos, enquanto o sistema fiscal e o gasto social brasileiro a limitam de maneira insignificante.
O relatório da Oxfam não se restringe à análise da situação de fato, mas identifica as causas que provocaram a absurda desigualdade atual: o fundamentalismo de mercado e a captura do poder pelas elites econômicas. A ideologia neoliberal, que continua dominante, apesar das contradições que suscitou, segue a impulsionar as diferenças, que não poderão ser reduzidas enquanto os países forem forçados a engolir remédios como a desregulamentação financeira, a austeridade fiscal, as privatizações, a redução de programas sociais ou o corte de impostos para os ricos. Por outro lado, como em um círculo vicioso, o dinheiro compra a influência e o poder político, tanto nos países ricos quanto nos pobres.
Para “reequilibrar o jogo”, a Oxfam identifica uma série de medidas específicas que, acrescentamos, não poderão ser alcançadas com base em alguma milagrosa fulguração de bondade da parte de quem hoje dirige o jogo, mas apenas à medida que as relações de força e de poder entre as minorias ricas e as maiorias pobres se inverterem. O mérito do relatório é demonstrar implicitamente que a batalha deve ser combatida em cada lugar de trabalho e em cada país, mas, para ser vencida, deve incluir um pensamento e uma ação global de todas as vítimas da desigualdade e de todos os seus aliados de boa vontade. Se a economia e a riqueza do mundo são globalizadas, a resposta para redistribuir deve ter a mesma escala. O nacionalismo é uma ferramenta arcaica. O que hoje precisamos é de um novo internacionalismo.
*Reportagem publicada originalmente na edição 825 de CartaCapital, com o título "Desiguais até na crise"