Poucos minutos depois de deflagrar o foco de incêndio que deu início à tragédia da Madeira, Paulo Gonçalves saiu de casa e começou a descer a passo tranquilo a ladeira em frente. A confusão já estava instalada em São Roque, com bombeiros, polícias e jornalistas de um lado para o outro, quando um grito fez o homem de 24 anos começar a correr: “Foi ele, foi ele!”
A mulher que falava alto não tinha visto nada – como, aliás, ninguém viu –, mas juntou em poucos segundos as peças. Paulo estava como está sempre que bebe e consome drogas: provocador e com saliva branca e seca nos cantos da boca.
Quando chegara a casa de um biscate que tinha feito nesse dia, já se tinha cruzado com aquela vizinha e soltou uma das ameaças das muitas que fazia, sobretudo quando estava mais transtornado. Bastou um “bom dia” para que respondesse: “Não sei se será bom fim de semana, talvez não volte e vou levar outros comigo.” Já ninguém ligava.
O homem, agora suspeito de ter mergulhado a Madeira num dos piores fogos de sempre, vivia há três anos em São Roque com um homem mais velho, a quem chamava padrinho. Segundo relatos que oi obteve junto de fontes policiais, foi o seu companheiro de casa o primeiro a saber do que tinha acontecido.
O dia em que Paulo pôs a Madeira a arder
Paulo Gonçalves acordou cedo na segunda-feira para ir fazer uns biscates na construção civil. Não era a primeira vez que se levantava perto das 7h e que regressava às 15h.
Quando chegou a casa, Manuel – descrito pela polícia como o companheiro – estava a ver uma telenovela. Já viviam juntos há cerca de três anos e o dono da casa percebeu logo que, além do álcool, Paulo já tinha tomado algumas “pastilhas”.
O fogo terá sido posto segundos antes de meter a chave à fechadura e ver o “padrinho” em frente à televisão. Segundos antes e mesmo nas traseiras da casa onde vivem.
Assim que chegou à sala, abriu o jogo sobre o que tinha feito: “Fodi isto tudo!” Dos depoimentos prestados à polícia, Paulo terá sido ignorado e insistiu: “Anda ver, incendiei tudo.” Manuel não queria acreditar no que viu quando se levantou e não viu outra saída senão entregar à justiça o rapaz que tinha “tirado da rua”.
Um suspeito de quem nunca ninguém gostou
Até chegar a São Roque, a vida de Paulo Gonçalves foi tudo menos fácil: abandonado pela família biológica, acabou entregue a uma adotiva com quem ainda hoje não se dá. Quem o conhece garante que viveu com os segundos pais até à maioridade, na região de Lume do Aguiar, e que acabou por se entregar às drogas, ao álcool e às más companhias.
Havia dias em que dormia na rua e foi num deles que conheceu o homem que lhe deu a conhecer a montanha por onde a Madeira começou a chorar.
Desde que lá estava, a vizinhança nunca foi à bola com a cara dele e, à polícia, muitos terão relatado mesmo que o seu comportamento fazia lembrar o de um psicopata. “Era dos poucos que no bairro não falava com ninguém, nem o bom-dia ou o boa-tarde dava”, contam. Não falava, no seu estado normal. Quando vinha “mamado”, levantava a cabeça e lançava as ameaças de sempre: “Um dia vou foder-vos a todos.”
As palavras tantas vezes se repetiram que nem o facto de já um dia ter estado preso por fogo posto trazia receio aos moradores de São Roque. Mas, às vezes, irritavam-se com a postura do recém- -chegado. Nos últimos meses houve diversas queixas feitas na polícia dando conta de que Paulo atiçava os cães dos outros, fazia ameaças e acusava alguns pela morte de cabras do “padrinho”.
A atitude suspeita e, sobretudo, os hábitos de consumo de droga, levaram por diversas vezes a PSP e a Polícia Judiciária ao bairro. Mesmo que não fosse consigo, era com os do seu grupo, que moram em locais próximos de São Roque.
Quem conhece o dia-a-dia do jovem suspeito de ter posto “meia Madeira a arder” garante que não tinha horários – exceto quando arranjava um biscate –, que vivia essencialmente às custas do “padrinho” e que andava sempre com o seu pastor--alemão. “Isso da cadela, não se pode mentir, ele cá tratava bem”, contam.
O momento em que os polícias o caçam
No dia do incêndio, Paulo Gonçalves deu uma corrida em vão. Foi de imediato caçado por dois elementos da Polícia Judiciária que foram para o local assim que o seu “padrinho” decidiu contar por telefone tudo o que sabia – neste caso, tudo o que Paulo lhe tinha contado quando chegou a casa.
Paulo foi detido logo na segunda-feira por suspeitas de ser o autor do foco de incêndio que rapidamente se propagou e destruiu várias partes do Funchal – São Roque, Alegria (que Marcelo Rebelo de Sousa visitou quarta-feira) e o Galeão.
O facto de muita gente não esconder que Paulo seria morto se regressasse ao bairro foi uma das justificações que levaram o tribunal do Funchal a decretar prisão preventiva, indicando precisamente o alarme social do caso. Mas para quem viveu de perto este caso, nem isso pode ser suficiente: “Ou acha que na [prisão da] Cancela não há ninguém a quem ele estragou a vida com esta brincadeira?”
“Preferia que não o prendessem”
Se, por um lado, há quem peça mão firme da justiça para este caso, também há os que garantem preferir uma justiça branda. “Se quer que lhe diga, preferia que o pusessem em liberdade, que ele aí teria um castigo maior”, dizem muitos dos que viram o incêndio passar-lhes ao lado das casas.
Descrentes numa justiça que não monitorizou à risca um homem que já tinha mostrado ser um potencial incendiário, muitos são ainda os que repartem as culpas entre Paulo Gonçalves e a polícia: “Não é só culpa do pequeno, não é assim? É culpa dele, claro, mas se já sabiam que ele colocava fogos, deveriam ter estado mais vigilantes.”
Voltou com a PJ no dia seguinte e não tremeu
Quando Paulo voltou a São Roque, nesta terça-feira, dia em que se confirmaram as primeiras mortes, estava calmo. Tão ou mais do que na véspera. Estava algemado e sob a custódia da Polícia Judiciária, que pretendia fazer a reconstituição de tudo o que tinha acontecido.
“Se não falares aqui, falas lá em baixo”, terão pressionado os elementos da PJ perante a recusa de Paulo em colaborar com a investigação. As cenas foram acompanhadas por alguns vizinhos, apesar de todas as atenções estarem ainda voltadas para os incêndios e as casas que, um pouco por todo o Funchal, começavam a ficar destruídas.
O i soube junto de fonte policial que Paulo ainda tentou atirar as culpas para o “padrinho”, garantindo que o incêndio começara com uma queima, mas a tese acabou por ser descartada.
Com o suspeito preso, as retaliações só poderiam ser feitas contra o homem que há três anos o levara para casa. E isso já começou.