Por Fr. Marcos Sassatelli*
1º de abril de 1964 é uma data que não pode ser esquecida. Passaram-se 50 anos do Golpe civil-militar, que deu início no Brasil a um longo período de ditadura, terminado somente em 15 de março de 1985. Fazemos a memória, ou seja, tornamos presente esta data para que os horrores praticados durante a ditadura nunca mais aconteçam na história do Brasil.
No dia 15 do mês corrente, participei - no Auditório Costa Lima da Assembleia Legislativa de Goiás - da Audiência Pública sobre a Luta Camponesa de Trombas e Formoso, no Norte de Goiás, realizada conjuntamente pela Comissão de Direitos Humanos, Cidadania e Legislação Participativa da Assembleia do Estado de Goiás (CDH-Alego), pela Comissão Nacional da Verdade (CNV) e pela Associação dos Anistiados Políticos de Goiás (Anigo), com o apoio do Comitê Goiano da Verdade, uma organização da sociedade civíl.
Fizeram parte da mesa Maria Rita Kehl (integrante da CNV, que coordena o grupo de trabalho "Graves violações de Direitos Humanos no campo ou contra indígenas"), o deputado Mauro Rubem (presidente da CDH-Alego), Marcantônio Dela Côrte (presidente da Anigo) e Dirce Machado da Silva (representante da Associação de Lavradores de Trombas e Formoso).
Foi uma Audiência, que resgatou a biografia do líder camponês José Porfírio de Souza (ou Zé Profiro, como era chamado pelos posseiros) e nos emocionou a todos e todas. Dirigentes de entidades civis, que conviveram com Porfírio, e seus descendentes nos contaram a história da Luta Camponesa de Trombas e Formoso, exigindo do Governo a localização dos restos mortais de José Porfírio.
Essa Luta começou em 1950. De um lado, estavam camponeses sem terra, apoiados por estudantes, operários e militantes de grupos de esquerda. Do outro, grileiros, apoiados por jagunços e forças policiais.
José Porfírio liderou um movimento camponês de resistência e luta pela reforma agrária, que, após dez anos de conflitos, conseguiu a vitória, conquistando terras devolutas, que os grileiros queriam tomar dos posseiros. Em 1962 - após a vitória dos camponeses - Porfírio elegeu-se deputado estadual, o primeiro do país de origem camponesa.
Com o Golpe civil-militar de 64, os camponeses da região foram perseguidos e torturados. No início dos anos 70, a repressão foi brutal. Porfírio mergulhou na clandestinidade e passou a organizar focos de combate à ditadura. Foi literalmente caçado pelos órgãos de repressão do regime autoritário civil-militar. Foi preso em 1972 no Maranhão - onde tentava articular um movimento de resistência - durante a Operação Mesopotâmia, organizada pelo Exército, que queria eliminá-lo. Foi levado para o Pelotão de Investigações Criminais (PIC) do Comando Militar do Planalto, em Brasília, onde permaneceu preso até 7 de julho de 1973. Foi torturado e - no dia que foi libertado - deixado na rodoviária da capital federal por sua advogada. Desde então, José Porfírio está desaparecido.
Na época, foram realizadas, no Norte de Goiás, inúmeras prisões. Entre elas, a de Durvalino, de 17 anos, filho de José Porfírio, que foi barbaramente torturado e, depois, internado, com transtornos mentais, num hospital psiquiátrico de Goiânia, onde desapareceu.
A Audiência Pública começou com a exibição de trechos do documentário Cadê Profiro? do cineasta Hélio Brito. Durante a Audiência, a ex-militante comunista Dirce Machado da Silva, presidenta da Associação dos Lavradores de Trombas e Formoso, enviada à região em 1954 pelo PCB para dar orientação política ao líder dos posseiros, afirmou: “José Porfírio foi um líder rural autêntico”. O presidente da Anigo, Marcoantônio Dela Côrte, disse: “os militares tinham muito medo do Porfírio”.
Cláudio Maia, professor da Universidade Federal de Goiás (UFG), lembrou que o Estado, diante do conflito agrário, agiu sempre em defesa do latifúndio e da exploração. Trombas foi um encontro de experiências. Mesmo tendo a presença de um partido de esquerda, o mais importante neste encontro eram os militantes, pessoas que acreditavam “no modelo camponês de fazer as coisas”.
“Trombas - afirmou o professor - ficou na memória do Estado de Goiás como um movimento vitorioso. E a figura de Porfírio se tornou muito conhecida no Estado. Ele espelhava não só sua individualidade, como também a sua luta e a luta de cada posseiro. Porfírio mantinha a característica de uma liderança consolidada. Esta áurea da vitoria de Trombas atravessou 1964?.
No final da Audiência, Sebastião de Abreu, jornalista e militante da luta de Trombas e Formoso, declarou: "não vamos parar de lutar. Queremos que os militares devolvam os restos mortais de José Porfírio".
O que mais me impressionou e me chocou na Audiência Pública foram os relatos de torturas de Dirce Machado da Silva. O requinte de crueldade das torturas do tempo da ditadura civil-militar chega a ser tão sofisticado, diabólico e repugnante, que é assustador. Não dá para acreditar que um ser humano seja capaz de usar sua inteligência para ser tão mau. É realmente uma barbárie!
Fala-se de dez tipos de torturas (com todas as variantes possíveis e imagináveis) praticadas nos “porões da humanidade” da ditadura: cadeira do dragão, pau-de-arara, choques elétricos, espancamentos, cama cirúrgica, afogamentos, soro da verdade, geladeira, arrastamento pela viatura, coroa de Cristo ou capacete. Que mancha indelével! Que vergonha para o Brasil!
Para qualquer pessoa, que tem um mínimo de sensibilidade humana e de senso ético, falar de torturas - seja por motivos políticos ou outros - dá vômito. Além disso, a prática da tortura denota um atraso cultural inconcebível e inadmissível no mundo de hoje. Ditadura, nunca mais! Tortura, nunca mais!
Para os torturadores de ontem e de hoje - que na realidade são verdadeiros monstros humanos - vale a advertência do profeta Isaías: “vocês estão com as mãos sujas de sangue, estão com os dedos manchados de crimes, seus lábios só falam mentira e suas línguas susurram maldade” (Is 59, 3).
Que a memória das torturas da ditadura civil-militar nos coloque, a todos e todas, num estado de silenciosa e profunda meditação sobre o sentido da vida humana e nos leve a um compromisso radical na defesa e promoção dos Direitos Humanos.
Que a justiça seja feita e que todos os torturadores sejam processados, julgados e punidos!
*Fr. Marcos Sassatelli, frade dominicano, doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP), professor aposentado de Filosofia da UFG - E-mail: mpsassatelli@uol.com.br
Enviado por mpa em qui, 27/03/2014 - 11:51
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