Assistido por juízes, advogados e jornalistas, nos EUA e em alguns países da Europa, o vídeo com o depoimento do ex-ministro José Dirceu ao titular da Vara Federal do Paraná, juiz Sérgio Moro, teve um efeito didático sobre o funcionamento do Judiciário, no Brasil; além dos efeitos causados à aplicação da lei pela interferência política da ultradireita brasileira nas principais Cortes de Justiça do país. Até no STF.
Advogado por profissão e capaz de exercê-la, a ponto de se estabelecer na elegante Avenida República do Líbano, nos Jardins da capital paulista, em uma casa de dois andares, espaçosa, com sua empresa de consultoria, o líder petista, frente a frente com seu inquisidor, afirma ao juiz Moro que não entendia o motivo porque foi preso. E está preso há seis meses. Nem Dirceu, nem o experiente barrister londrino, Sir Jeffrey Jowell e seus associados Timothy Otty e Naina Patel, da banca Blackstone, uma das mais bem remuneradas da City. Nem centro mundial do capitalismo, ao qual serve o juiz paranaense, a prisão de Dirceu — inimigo jurado do stablishment desde que concluiu o curso de guerrilha em Cuba, no século passado — foi comemorada como uma vitória dos conservadores sobre a esquerda brasileira. Mas encarada como um sinal preocupante quanto à saúde do sistema jurídico nacional.
Como afirmou o jornalista Paulo Nogueira, editor do site Diário do Centro do Mundo, desde Londres, afirmou em artigo, logo após a divulgação do vídeo com o depoimento de Dirceu, que aquele era “um retrato perturbador da Lava Jato e do próprio Moro”.
“Você vê um entrevistador, ou interrogador, hesitante, despreparado e munido de acusações de extrema fragilidade. Na contrapartida, o entrevistado, ou interrogado, responde a todas as questões com a clareza que faltou por completo a Moro. Dirceu está cansado, claramente, abatido – mas mantém o raciocínio límpido e rápido. A não ser que você seja um antipetista fanático, ao fim do vídeo você vai se perguntar: ‘Mas o que este cara tá fazendo preso há tantos meses?”, ressalta Nogueira.
Assista ao depoimento de Dirceu:
Para o articulista, que já dirigiu a revista semanal de ultradireita Veja, da Editora Abril, e conhece as organizações patrocinadoras do ambiente de ódio que impera na política brasileira, nas entrelinhas, “o que mais chama a atenção é a ignorância sobre a natureza do tipo de consultoria que um homem como Dirceu pode prestar a grandes empresas interessadas em conquistar mercados internacionais. Qual é a mercadoria que ele tem? Suas relações, o conhecimento que amealhou ao longo de anos de vida política”, explica.
“Eu estava na Abril quando a empresa solicitou os serviços de consultoria de Maílson da Nobrega, o homem dos 80% de inflação mensal. O que se demandava de Mailson, em sonolentas reuniões em que eu frequentemente dormia, como amigos meus do então Comitê Executivo da Abril poderiam confirmar, é que ele e sócios da consultoria Tendências mostrassem os cenários econômicos e políticos.
Existe, é certo, outro tipo de consultoria. Ainda na Abril, a Booz-Allen fez um trabalho de reengenharia financeira. Aí sim eram pilhas de estatísticas”, detalha.
Banca britânica
A rotina do juiz Sergio Moro, de mandar prender os implicados na Operação Lava Jato, da Polícia Federal (PF), causa ainda mais espécie aos advogados britânicos que, em recente parecer — encomendado pela defesa dos executivos da empreiteira Odebrecht — afirmaram ser uma “afronta aos princípios mais básicos do Estado Democrático de Direito” o uso generalizado de prisões anteriores a um julgamento”. Segundo os associados da Blackstone Chambers, a forma como Lava Jato (Car Wash, como traduziram) tem sido conduzida pela Justiça Federal “levanta sérios problemas relacionados ao uso de prisões processuais, o direito ao silêncio e à presunção de inocência”. Para os advogados ingleses, a condução da operação tem violado os princípios da presunção de inocência e o direito a um “julgamento justo em prazo razoável”.
O mandato de prisão de Dirceu, segundo balanço do Ministério Público Federal até 18 de dezembro do ano passado, foi apenas mais um entre os 119 expedidos, dos quais 62 foram de prisões preventivas, e 57, de temporárias. Outro balanço, também do MPF, diz que são 140 os denunciados e 119 os que tiveram a denúncia aceita pela Justiça, tornando-se réus. Outros 80 já foram condenados.
“Nessas circunstâncias, há preocupações reais de que houve falha na adequação do significado fundamental e histórico do direito à liberdade e à natureza expedita do remédio que representa o Habeas Corpus”, afirma o parecer da Blackstone.
O parecer dos advogados ingleses cita relatório da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) sobre o uso de prisões preventivas na América do Sul e na América Central, publicado em 2013, referente a dados coletados em junho de 2012. Proporcionalmente, o Brasil é o segundo país com mais prisões preventivas da região, com 191 mil pessoas encarceradas sem julgamento, ou 38% do total, até junho de 2012. Para os barristers ingleses, os dados mostram que vários padrões internacionais de direitos humanos, inclusive tratados dos quais o Brasil é signatário, são desrespeitados, entre eles a presunção de inocência, o Ônus da Prova, o Princípio da excepcionalidade, no qual a prisão antes do julgamento só deve ser usada apenas como “último recurso em situações específicas” e as Razões legítimas para prisão, nas quais é obrigação do Estado não restringir a liberdade de um acusado além dos limites estritamente necessários para garantir que ele não impeça o desenvolvimento eficiente de uma investigação..
O parecer da Blackstone ainda acrescenta que características pessoais dos investigados e acusados não podem servir de motivo para a prisão preventiva. “O significado é óbvio”, diz o texto. Isso quer dizer, para os advogados, não se pode justificar uma prisão com base no argumento de que o réu é rico ou que é acusado de crimes graves, como corrupção. “Algo mais concreto, como o risco de fuga ou de intervenção nas investigações, é necessário.”
Porta-voz dos mais castiços conservadores da City, a revista britânica The Economistusou o parecer da Blackstone para uma reportagem intitulada Justiça estranha (Weird Justice, no original). A conclusão do texto é que, enquanto suspeitos e acusados são presos antes do julgamento, os condenados recebem penas brandas, como a prisão domiciliar ou a obrigação de comparecer em juízo uma vez por mês. A Economist relata as críticas feitas à espécie de “carisma” do juiz Sergio Moro, que conduz a Lava Jato em Curitiba, e critica a prisão de mais de 600 mil pessoas, 40% das quais ainda não foram condenadas. Diz, porém, que os motivos são “menos óbvios” do que os discutidos naLava Jato”: o problema é que, no Brasil, afirma a revista, um único juiz pode mandar alguém para a cadeia sem a anuência de um júri popular.
Efeito da mídia
Digna de uma das maiores coberturas na mídia conservadora do país, a prisão de José Dirceu se mistura às dos demais envolvidos nesta que se tornou, na realidade, em uma caçada ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, agora tratado como “investigado” pela PF paulista. No relatório da Blackstone os barristers citam as declarações do procurador da República Manoel Pastana a jornalistas, para defender o uso das prisões preventivas com o objetivo de forçar as delações premiadas:
“Em crime de colarinho branco, onde existem rastros mas as pegadas não ficam, são necessárias pessoas envolvidas com o esquema para colaborar. E o passarinho pra cantar precisa estar preso”, disse o procurador, em novembro do ano passado.
Caso prevaleça a máxima do procurador Pestana, Lula corre sério risco, principalmente se o ambiente de conflagração ficar ainda mais acirrado no próximo dia 17, quando prestará depoimento no Fórum Criminal da Barra Funda, em São Paulo, na condição de investigado. Poderá cair numa “armadilha”, como adianta o blogueiro Eduardo Guimarães, titular do Blog da Cidadania. Segundo afirmou, em publicação editada neste sábado, teria recebido uma “denúncia séria de que o governo do Estado de São Paulo estaria preparando uma armadilha para Lula e seus apoiadores durante depoimento do ex-presidente e sua mulher no Fórum Criminal da Barra Funda, no dia 17, às 10 horas da manhã”.
Para o blogueiro, “como se vê, o clima, por si só, deve esquentar”.
“O promotor tucano já deu a senha. Como uma das maiores autoridades no local, poderá controlar a PM a seu bel prazer” suspeita.
De acordo com a denúncia que recebeu, Guimarães conta que “sob ordem das autoridades do Fórum, a PM tentará arrumar uma desculpa para impedir a entrada dos grupos pró-Lula no local, dando total acesso aos grupos antipetistas. Se não for possível, a PM tratará de atacar e dispersar os grupos de apoio a Lula, acusando-os de algum excesso que poderá ser cometido por gente do outro lado e atribuído aos petistas”.
Não seria o primeiro ataque direto ao ex-presidente da República. Noite passada, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes foi à festa de aniversário da ministra da Agricultura, Katia Abreu e, “aos brados”, chamou o ex-presidente Lula de “bêbado”. Mendes, segundo notícia veiculada em um diário conservador carioca, disse que “Lula chegou embriagado em São Paulo para prestar solidariedade às vítimas do acidente da TAM, em Congonhas, ocorrido em outubro de 1996. A tragédia acabou com 99 mortos. Constrangimento geral”, conclui.
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