“São pessoas de bem e bons profissionais”, escreveu o médico e deputado
estadual Carlos Mosconi (PSDB-MG) no Facebook, no último dia 7 de
fevereiro, sobre seus colegas de profissão: Celso Scafi, Cláudio
Fernandes e Sérgio Gaspar. Na mesma data em que ele postou a mensagem os
três foram condenados à prisão pela Justiça de Minas Gerais. Os médicos
retiraram os órgãos de um menino de 10 anos quando ele ainda estava
vivo, em Poços de Caldas (MG), em abril de 2000. Segundo a Justiça
mineira, a intenção dos réus era vender rins e córneas do garoto, em
mais uma ação da ‘Máfia dos Transplantes’.
A solidariedade do deputado em seu perfil na rede social é só mais um
indício da estreita ligação entre ele e os condenados. Mas somente
agora, após 14 anos da divulgação do caso, a relação poderá ser
esclarecida. Além de determinar a pena dos colegas de Mosconi, a
sentença do juiz da 1ª Vara Criminal de Poços de Caldas, Narciso
Alvarenga Monteiro de Castro, determina que o deputado seja investigado o
mais rápido possível por suas “supostas atividades ilícitas” ao lado
dos réus. O escândalo foi divulgado por CartaCapital
em três reportagens. Outro médico também citado nos processos, o
nefrologista, Álvaro Ianhez, será levado a júri no próximo dia 31 de
julho.
Há 14 anos, o menino Paulo Veronesi Pavesi, de 10 anos, deu
entrada no Hospital Pedro Sanches, em Poços de Caldas, depois de cair de
uma altura de 10 metros no playground de seu prédio. O garoto estava
consciente e conversava, mas apresentava traumatismo craniano e teve que
passar por uma cirurgia. No dia seguinte, o pai da criança, Paulo
Pavesi, foi informado da morte do filho e da possibilidade de doar os
órgãos. Ele autorizou a retirada.
Algum tempo depois, Pavesi recebeu uma conta de R$ 11 mil do
hospital. A cobrança incluía, entre outras coisas, os gastos com o
transplante feito no garoto. Intrigado, ele resolveu pesquisar e
descobriu que a operação para retirada de órgãos é feita com recursos do
Sistema Único de Saúde (SUS) e, portanto, não pode ser cobrada. O pai
denunciou o hospital, então, ao programa Fantástico, da TV Globo. A
reportagem levou o então ministro da Saúde José Serra (PSDB-SP) a pedir
uma auditoria na unidade. O que se descobriu foi que a irregularidade
era apenas parte de um esquema de venda de órgãos gerenciada por uma
central clandestina, a MG Sul Transplantes. A central estava registrada
como uma ONG e usava um nome similar ao do órgão estadual responsável
por este tipo de procedimento, a MG Transplante.
O menino Paulinho foi atendido pelo médico nefrologista Álvaro
Ianhez, coordenador do setor de transplantes do hospital e, ao mesmo
tempo, um dos fundadores da ONG MG Sul Transplantes. Com a ajuda de
Celso Scafi, Cláudio Fernandes e Sérgio Gaspar, Ianhez decretou a morte
encefálica do garoto quando ele ainda estava sedado. O único exame feito
pela equipe, contudo, atestou que não havia morte cerebral. Nada disso
impediu que os médicos prosseguissem com a retirada dos órgãos.
A reportagem de CartaCapital teve acesso à
integra da sentença do juiz Narciso Alvarenga. De acordo com o
magistrado, as investigações revelaram outros oito casos semelhantes.
“Tudo corria bem, achavam que era mais um paciente pobre, de família com
baixa instrução, e ainda era feriado. Até que tentaram cobrar também
pelo transplante, a ganância foi muita. A partir daí se descobriu um
verdadeiro filme de horror”, resumiu Alvarenga.
E foi a apuração dessas denúncias que colocou em evidência o nome do
deputado Mosconi. Na última sentença, ele é citado 70 vezes. Entre os
indícios apontados pelo juiz do que seria sua participação no esquema
estão provas que mostram que o tucano é um dos fundadores da MG Sul
Transplantes, a ONG clandestina apontada como a agenciadora dos órgãos.
“Os órgãos não foram distribuídos pela CNCDO (Central de Notificação e
Captação de Órgãos), a MG Transplantes, e sim pela central clandestina
MG Sul Transplantes, coordenada por Álvaro Ianhez e idealizada por
Carlos Mosconi”, conclui o juiz na sentença.
A prova de que ambos foram os criadores da instituição é um texto no
Jornal Brasileiro dos Transplantes, que noticia a fundação da ONG. O
documento que formaliza a criação e foi publicado pelo jornal é assinado
por Mosconi e alguns dos médicos condenados, como Celso Scafi e Cláudio
Rogério. “Tal entidade manipulava uma lista própria de receptores,
interestadual, juntamente com outra entidade, a Pro Rim”. Ainda segundo o
texto judicial a Pro Rim era dirigida por Lourival Batista, conhecido
por ser o primeiro transplantado de Poços de Caldas. E quem fez a
cirurgia em Batista? Justamente Carlos Mosconi.
“A Pro Rim gerenciava uma lista própria de receptores de órgãos.
Sendo que a lei fala que tem que ser uma lista única, municipal,
estadual ou nacional. Essa lista era interestadual, e tinha pacientes de
cidades vizinhas, no estado de são Paulo. São irregularidades e
ilegalidades sérias”, explica o juiz.
O pedido de investigação do tucano também se baseia em um depoimento
do pai do menino Paulinho. No último mês de junho, a Justiça brasileira
solicitou que Paulo Pavesi fosse ouvido por autoridades inglesas, pois o
gerente de sistemas vive hoje em Londres sob proteção policial, após
receber ameaças.
“As investigações feitas por autoridades brasileiras descobriram
dezenas de crimes, em diversos casos semelhantes ao do meu filho. Em
geral, os pacientes tiveram seus tratamentos terapêuticos suspensos ou
negligenciados propositalmente e foram empurrados para a morte a fim de
fornecer órgãos para transplantes. Álvaro Ianhez criou uma rede de
captação e distribuição de órgãos completamente clandestina, com o
auxílio e proteção política de Carlos Mosconi. [...]. Carlos Mosconi
possui o controle política da cidade. Ele comanda a polícia, o
Ministério Público, os órgãos de fiscalização municipal e até estadual”,
afirmou Pavesi, em depoimento às autoridades inglesas.
O deputado tucano teria usado, por exemplo, sua influência para
desaparecer com provas. O delegado Célio Jacinto, responsável pelas
investigações da PF, revelou na época a existência de uma carta do
parlamentar na qual ele solicita ao amigo Ianhez o fornecimento de um
rim para atender ao pedido do prefeito de Campanha (MG). A carta,
segundo o delegado, foi apreendida entre os documentos de Ianhez, mas
desapareceu misteriosamente do inquérito sob custódia do Ministério
Público Estadual de Minas Gerais.
Episódios como este levaram a Justiça e o Ministério Público a
classificarem o esquema como uma “máfia”. Cerca de dois anos depois da
morte do menino Paulinho, o diretor da Santa Casa de Misericórdia de
Poços de Caldas, Claudio Marcondes, foi encontrado morto dentro do
próprio carro com um tiro na boca. Com base em depoimentos que constam
nos autos, o juiz afirma que Marcondes teria gravações de conversas
comprometedoras dos médicos envolvidos no tráfico de órgãos.
A arma encontrada no local nunca foi periciada e sumiu. Além disso,
as mãos de Marcondes foram lavadas, raspadas e enfaixadas, o que
impossibilitou qualquer exame para saber se foi ele mesmo quem atirou
contra si próprio. Segundo a Justiça, o carro da vítima ainda foi lavado
duas vezes por Sérgio Roberto Lopes. Ex-PM, “Serjão” fecha o círculo em
torno de Mosconi. Segundo o juiz Narciso Alvarenga, Sérgio era advogado
da Santa Casa e foi levado para a política pelo deputado tucano. Ele
seria ainda o responsável pelo estatuto da Pro Rim, a entidade parceira
da MG Sul Transplantes.
A sentença ainda alerta para a possibilidade de que o deputado esteja
por trás de outros negócios escusos. Uma das maiores fornecedoras de
equipamentos hospitalares da Santa Casa de Poços é a empresa Mantiqueira
Distribuidora de Produtos Hospitalares. A companhia está registrada nos
nomes dos filhos de Mosconi, mas ele seria o dono. O deputado
destinaria emendas ou recursos para o hospital que, por sua vez, usaria a
verba para comprar equipamentos da Mantiqueira.
Se for mesmo investigado, Mosconi terá de conciliar sua defesa
com mais uma campanha eleitoral. Ele é candidato a deputado federal pelo
PSDB.
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