"O Senhor disse que aqueles que querem viver piedosamente serão perseguidos. Estamos vivendo um ensaio daquilo que ainda virá com mais intensidade contra os cristãos". Com o colarinho desabotoado, terno e gravata escuros e camisa branca, o pastor Henrique Afonso (PV-AC) faz um alerta às pessoas que acompanham sua pregação na manhã da última quarta-feira. O local: o plenário número dois das comissões da Câmara dos Deputados. O público: oito deputados federais e trinta servidores do Congresso.
O culto ocorre semanalmente. Os parlamentares-pastores fazem um rodízio. A cada semana, uma dupla divide a direção do serviço e a pregação do dia. Na última quarta-feira, o sermão de Henrique Afonso estava relacionado à tensão gerada pela eleição de Marco Feliciano (PSC-SP), pastor da Assembleia de Deus, para a presidência da Comissão de Direitos Humanos. O deputado enfrenta resistência por afirmar que a união de pessoas do mesmo sexo é condenável e dizer que os africanos são vítimas de uma maldição dos tempos bíblicos. O caso apontou os holofotes para a atuação da bancada evangélica no parlamento. Em parte pelos próprios defeitos, em parte pela incompreensão dos adversários políticos, esses parlamentares têm ganhado espaço cada vez maior no debate político nacional. E os sinais são de que eles vieram para ficar.
A presença de evangélicos na política – assim como a de católicos ou espíritas – não é novidade. Partidos de inspiração cristã existem em países como Suíça, Inglaterra e Holanda sem que isso signifique qualquer ameaça à democracia. A mulher mais poderosa da Europa, a primeira-ministra alemã, Angela Merkel, pertence à tradicional União Democrata-Cristã de seu país. A mesma Alemanha tem como presidente o independente Joachim Gauck, um conhecido pastor luterano. O maior partido do Parlamento Europeu, o European People's Party, é composto fundamentalmente por democratas-cristãos. Assim como os cultos na Câmara dos Deputados, a realização de eventos religiosos no Congresso dos Estados Unidos é comum desde a época de Thomas Jefferson. O movimento abolicionista surgiu na Inglaterra, organizado por um grupo de doze protestantes. A campanha dos direitos civis nos Estados Unidos teve como líder o pastor batista Martin Luther King.
Parlamentares evangélicos em momento de oração (Saulo Cruz/Agência Câmara)
Em Brasília, chama a atenção a atuação organizada desse grupo de parlamentares que, apesar de pertencerem a partidos diferentes, se articulam na defesa de suas bandeiras. E elas costumam ser mais contra do que a favor: contra a legalização do aborto, o casamento gay, a eutanásia e a liberação das drogas. A favor, basicamente, da ampla liberdade religiosa. No total, os evangélicos representam 14,2% dos deputados e 5% dos senadores.
A bancada evangélica também não foge à regra do Congresso Nacional quando o assunto são denúncias de corrupção. Dos 73 integrantes na Câmara, 23 respondem a processo no Supremo Tribunal Federal (STF). Há acusados de corrupção, peculato (desvio praticado por servidor público), crime eleitoral, uso de documento falso, lavagem de dinheiro e estelionato. Há até um condenado a prisão que pode ir para a cadeia em breve: Natan Donadon, que tem pena de treze anos e quatro meses a cumprir.
Outro ponto delicado é a legitimidade do uso de fiéis como plataforma política. São muitos os indícios de que alguns deputados evangélicos utilizam os seguidores como massa de manobra. Na última quarta-feira, em meio à turbulência envolvendo a Comissão de Direitos Humanos, Anthony Garotinho (PR-RJ) dava conselhos a Marco Feliciano no plenário da Câmara e sugeria que o colega renunciasse à presidência do colegiado. Ex-governador do Rio, Garotinho foi direto: "O que você tinha que capitalizar no meio evangélico, já capitalizou".
"Todos os partidos têm buscado, de uma maneira geral, ter evangélicos nos seus quadros, porque é um segmento substantivo do eleitorado brasileiro. Essas religiões estão crescendo, e é claro que há interesse como massa eleitoral", diz o cientista político e professor da Universidade de Brasília (UnB) João Paulo Peixoto. Ele também afirma que os parlamentares evangélicos, se não são melhores do que a média, não fogem à regra dos colegas de Congresso: "Os evangélicos não estão acima do bem e do mal. Embora tenham uma pregação rígida dos valores morais, há também um outro lado que diz respeito à própria condição humana", afirma.
O deputado João Campos (PSDB-GO), pastor da Assembleia de Deus e presidente da Frente Parlamentar Evangélica, reconhece que os desvios éticos prejudicam a imagem dos parlamentares da frente: "Se tiver um processo de corrupção, é claro que incomoda. A exposição negativa pode prejudicar, mas acho que faz parte do processo".
Histórico – A Frente Parlamentar Evangélica foi criada em 2003. Três anos depois, o Congresso foi atingido por um escândalo que colocou os evangélicos em evidência da pior forma possível: a Máfia das Sanguessugas, que desviava emendas parlamentares e abastecia os bolsos de deputados e empresários, envolveu 23 integrantes da bancada. Desses, dez eram da Igreja Universal do Reino de Deus e nove pertenciam à Assembleia de Deus. Talvez por isso, os deputados ligados a essas igrejas perderam espaço nas eleições de 2006. A recuperação nas urnas ocorreu em 2010 com a renovação dos quadros políticos. Hoje, representantes da Assembleia de Deus – que tem diversas ramificações e não possui comando único, como é o caso da Igreja Universal – são os mais numerosos.
Além dos deputados, quatro senadores compõem o time evangélico no Congresso. A maioria desses 77 parlamentares pertence à base da presidente Dilma Rousseff. Mas, como algumas bandeiras relacionadas ao aborto e ao casamento de pessoas do mesmo sexo não são prioridade na pauta dos partidos de oposição, os evangélicos acabam ocupando uma função dúbia: apoiam o governo em temas econômicos e de assistência social, mas divergem abertamente quando o Executivo quer, por exemplo, distribuir o "kit-gay" nas escolas primárias ou relaxar as penas para traficantes de drogas.
A parceria com um governo petista é especialmente contraditória porque o partido tem como resolução oficial a legalização do aborto e a defesa das bandeiras do movimento gay. O autor do sermão da última quarta-feira no culto da Câmara sabe bem disso. Henrique Afonso, que é presbiteriano, foi integrante do PT até 2009, quando acabou punido por não abrir mão da oposição ao aborto. Luiz Bassuma, espírita, também deixou a sigla e foi parar no mesmo PV.
"Nós tínhamos uma cláusula de consciência quando eu entrei no PT, e isso me garantia a expressão da minha cosmovisão", explica Afonso. "A partir do momento em que tiraram essa cláusula de consciência e passaram a defender explicitamente a descriminalização do aborto e outras matérias associadas à bioética, eu tive de ter um posicionamento contrário."
Afonso e Bassuma entraram no PV porque, na época, a sigla tinha como expoente a ex-senadora Marina Silva, também evangélica. Agora, ela pretende formalizar o seu novo partido, a Rede, para disputar as eleições presidenciais de 2014. É pouco provável que o projeto seja bem-sucedido. Mas, se funcionar, Marina será a primeira representante das igrejas protestantes a chegar ao poder máximo.
Fonte: Com informações da Revista VEJA
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